terça-feira, 3 de abril de 2012

A GENTE SE ACOSTUMA A TUDO

A gente se acostuma a tudo mesmo, é impressionante mas já me acostumei a fazer dieta, sigo o cardápio elaborado pela Dra. Angélica desde o final de Janeiro e posso dizer que três meses depois já me acostumei ao mesmo. Hoje, alguns alunos me levaram um pedaço de bolo de chocolate na sala de aula, era o aniversário da professora deles e não foi sacrifício algum dizer que não queria e sugerir que eles o entregassem a outra professora. Por ser semana de Páscoa, na escola em que trabalho, a tradição é preparar com algumas mães, na presença dos alunos, pães caseiros e no final do período o mesmo é servido aos alunos, o cheiro realmente é muito bom e o prazer em servi-los quentinho e com manteiga também, mas passei bem sem comê-los, certamente passei bem melhor do que se os tivesse comido. Almocei dentro do meu plano alimentar e ao voltar a escola, para uma reunião, uma professora ofereceu atraentes bombons, mas as outras pessoas também já se acostumaram que eu não vou comer o que não está dentro do meu plano alimentar e elas mesmo adiantaram que eu não iria comer os bombons. É, me acostumei a fazer dieta. Nem sempre se acostumar com as coisas é algo bom, já trabalhei com o texto abaixo, numa montagem teatral no Juventude Cidadã, e falávamos justamente do quanto é ruim se acostumar com as coisas mas eu preciso confessar que é bem mais fácil fazer dieta quando estou acostumada a mesma do que no comecinho da dieta.


 Eu sei, mas não devia 
( Marina Colasanti)

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra. A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta. A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma. 
 (1972)




Por hora, é muito bom estar acostumada a fazer dieta !

2 comentários:

  1. É complicado pensar em se acostumar, principalmente na época da páscoa, hoje eu mesmo estava pensando assim: Será que no próximo ano vou poder comer chocolate na páscoa? será que é pra sempre assim?

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  2. A Páscoa realmente é algo que me desestabiliza, sei que não devia estar pensando em domingo de Páscoa se hoje é sexta-feira santa, o certo seria me centrar no dia de hoje, afinal o dia de hoje é tudo que tenho.
    Mas não consigo pensar em outra coisa, se eu soubesse que no próximo ano estaria curada eu ficaria feliz, mas pra compulsão alimentar não existe cura.
    Não posso ter uma recaída.

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